E se a lagosta virar feijão?

Vez por outra há uma reinvenção da riqueza.

Esse movimento ocorre graças, é claro, à reinvenção da pobreza.

É preciso determinar sempre muito bem o que é pobre, para começar a desenhar o que é rico. Eu não sei se na economia ou na sociologia é nesta ordem que as coisas acontecem, mas no consumo é sim: a pobreza determina a riqueza.

Sobretudo após o surgimento da classe média: ela vive com tamanho medo da pobreza que emula com todos os seus recursos os hologramas da riqueza que deseja: a viagem de cruzeiro pela CVC, paga em 12X no cartão é a emulação de um iate do milionário. É a percepção de estar longe do que se teme e próximo do que se deseja através de uma fantasia clara, constante e controlada de auto-realidade.

Essa não é daquelas situações de certo ou errado, é apenas um fato da coerência social atual. Um fato cultural sem possibilidade alguma de maniqueísmos exagerados.

No entanto, o que importa pra gente aqui é apenas uma coisa:

Tudo que definimos por luxo hoje, será o cotidiano de amanhã – sobretudo em uma sociedade onde a classe média existe.

Quando eu ouvia o Emílio Surita (esse mesmo que hoje passeia com verniz de direitista isentão pelos corredores da Jovem Pam) tentando vender, por qualquer “Tv Shop” da vida, computadores que já vinham com conexão à “rede mundial de computadores”, onde eu poderia “navegar na web”, eu simplesmente tinha a absoluta certeza de que isso jamais seria para mim.

Era coisa para (no máximo) meia dúzia de brasileiros.

De fato, eu invejava o Emílio, que, ao trabalhar com as vendas, ao menos podia tocar e manusear estes aparelhos. Essa era minha situação de classemédier da época.

Isso tudo também não é novidade.

Canela em pó é item obrigatório em toda cozinha do país. Não há vó no mundo que resista a ter seu estoque aumentado a cada visita ao mercado.

Pobre, rico ou classe média: hoje a canela em pó é a realidade do mundo.

Não era.

Guerras foram travadas, pessoas lançaram-se ao mar incerto e incontáveis vidas foram perdidas para que uma faustosa elite ibérica pudesse desfrutar de canela (e outras iguarias) que vinham “das índias”.

A própria América, aliás, foi descoberta por espanhóis (sim, eu sei que viking – e todo mundo mais , aparentemente – já tinham chegado aqui antes, mas não vem ao caso).

O luxo moveu as navegações. O desejo de luxo.

Mas o que é luxo?

Não é errado definir o luxo como algo supérfluo, porém se notarmos o que eu entendia como luxo quando era criança (a internet), o luxo também não é tão supérfluo assim – pode ser bem útil.

Aliás, em um mundo cada vez mais tecnocrata, o luxo e a tecnologia estão certamente cada vez mais entrelaçados também.

O luxo parnasiano (“luxo pelo luxo”), luxo adorno, esse sim, parece estar com os dias contados em sua maioria, pelo simples fato de que é um luxo que deixou de ser chic e passou a ser cafona.

Vale lembrar: luxo e elegância são coisas diferentes. Luxo e chiqueza são coisas diferentes. Luxo e glamour são coisas diferentes.

Recentemente, por exemplo, a marca de luxo italiana Bottega Veneta abandonou o instagram. Isolar-se da maior rede social visual do momento é uma maneira de se destacar através da inacessibilidade. É chic, dizem alguns.

Será?

Ou esta seria só uma maneira que a marca encontrou de ficar ainda mais inauditável para a vigilância de seus consumidores, e, principalmente, do público em geral?

Em todo caso, esse é assunto para uma outra discussão. A pergunta aqui é: o que é luxo, o que faz o luxo e qual a função do luxo.

Vi na prateleira: água, 500 ml, 11 reais.

Leiam novamente: água, 500 ml, 11 reais.

É da VOSS, vocês já devem ter ouvido falar – “A água mais pura do mundo”.

De acordo com o site da revista Exame, ela “brota naturalmente de uma fonte no sul da

Noruega, no deserto gelado, sob uma formação rochosa protegida do ar e de qualquer tipo de contaminação externa”.

De acordo comigo, ela é água. Nada mais.

Água. Água existe desde que o mundo é conhecido como mundo, H2O, o elemento mais

importante da natureza, 2/3 do planeta Terra, 70% do seu corpo.

Mas a VOSS é especial. A VOSS vem de uma fonte seiquelá da Noruega, e portanto custa 11 reais (500 ml).

Aqui, embora o produto seja absolutamente o mesmo commodity, o luxo é a narrativa. O luxo é o serviço.

Mas não é só isso. O luxo não é apenas fruto da sociedade de consumo. Para os romanos, usar algum pedaço de tecido púrpura em sua vestimenta era o luxo dos luxos.

Atualmente, o luxo há de ser sim um ente distanciador, mais uma vez, graças à classe média.

O rico tem um estilo de vida caracterizado pelo luxo enquanto o pobre tem um estilo de vida caracterizado pelo necessário, e muitas vezes nem isso. A classe média, entre uma coisa e outra, vai criando mecanismos de distanciamento cada vez maiores que aos separá-los dos pobres, tampouco os aproxima dos ricos – que passam a buscar novas formas de distanciamento: essa é a reinvenção da riqueza que a pobre impele, sobretudo quando os luxos de ontem vão se tornando a realidade de hoje para os pobres.

Enquanto a classe média não existia, a nobreza vivia em abundância e a plebe não. Simples assim. Isso definia o luxo: abundância. Hoje, muito se fala do “minimalismo”, estilo de vida de se viver com o mínimo possível: ou seja, chegamos a um ponto social onde é preciso ser muito rico para optar por viver com pouco.

Seja pela pirataria, assistencialismo ou pelo crediário, a sociedade de consumo permitiu a todo mundo o acesso à realidades inimagináveis para a grande maioria das pessoas há 50 anos, e todos os anos para trás. Hoje todo mundo (dadas as devidas proporções) pode ter praticamente tudo. O que não tem, emula.

Enfim chegamos ao mundo onde ser rico não tem mais graça. A consequência é que foi preciso reinventar a riqueza, a exclusividade, o caro, o VIP. É preciso, inclusive, pegar um produto e dizer que é outro. Como é o caso da água VOSS.

A “premiunização” é a narrativa oficial da riqueza ascendente: tornar o banal um luxo, um desejo, uma tentação, e, mais que isso, uma ostentação – sempre ela.

O luxo para o rico é o mínimo. Para o pobre é o máximo. Para a classe média, uma narrativa onírica de alcance.

Justamente por estes dois polos, entre ricos e pobres, no entanto, há uma crescente aproximação de luxos, separados única e teimosamente pela classe média. A classe média é incapaz de permitir essa aglutinação pois, sob qualquer aspecto, isso signfica seu absoluto desmantelamento. A aproximação absoluta de seus medos e a fuga total de seus desejos.

Se é ruim ou bom, este que escreve não está aqui para julgar. Se a lagosta virar feijão, certamente outra coisa será caviar. Qualquer tipo de luxo só é possível através do contraste. Se é pra todos, não é luxo e isso é indiscutível pela própria definição do termo, porém voltamos ao início deste artigo: luxo não é uma coisa, é um tempo.

O luxo de hoje é a obrigatoriedade de amanhã. Cada dia há de surgir um novo contraste, fomentado pela possibilidade constante de “descontrastualização”.

Hoje o contraste é mais sutil e essencial: pobre e rico que vivem de minimalismos só encontram suas diferenças através da origem de suas narrativas.

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