Quando o privado cala, é censura?

Quase toda a semana aparecem casos de suspensão, bloqueio temporário ou até mesmo banimento de pessoas públicas das redes sociais. No Brasil, a notícia da vez é a expulsão do canal Terça Livre, comandado pelo jornalista Allan dos Santos, da rede YouTube, mas todos pudemos acompanhar o cancelamento do ex-presidente americano Donald Trump de praticamente todos os meios de comunicação online que ele utilizava. Em um primeiro momento, o Twitter o suspendeu por 12h. Depois, avaliou os tweets que ele continuou publicando e o bloqueou de vez. Daí em diante foi um efeito dominó: Facebook e Instagram acompanharam a decisão; o recém-criado sindicato de funcionários da Alphabet, do gigante Google, pressionou e a empresa suspendeu o canal do ex-presidente do YouTube, assim como fez o Snapchat, por fim. Todas alegaram dissipação de inverdades e incitação ao ódio como argumento para suas decisões radicais.

Surge então a dúvida: podem empresas privadas como Twitter, Facebook e YouTube calar alguém? Devemos ficar confortáveis com a ideia de que gigantes geridas por dois ou três indivíduos tenham o poder de remover um presidente do fórum de discussões? Isso é censura?

Em geral, censura numa democracia é quando o Estado proíbe alguém ou algum veículo de comunicação de levar uma determinada mensagem a público. Pode ser o executivo, o legislativo ou o judiciário – se é o Estado, é censura. Por outro lado, pessoas, empresas ou veículos de comunicação particulares escolhem quais mensagens desejam levar ao público, quem entrevistam ou quem aceitam que fale em seus espaços – têm o direito de permitir ou proibir o diálogo como bem entenderem. Isso até um certo momento recente de nossa história era dado, fato concreto, e inclusive muitos de nossos contemporâneos sentiram na pele a censura lato sensu imposta por seus governos.

Hoje, no entanto, presenciamos um fenômeno inédito: as redes sociais. Se o Twitter é o local onde mais trocamos informações e diálogos, o Twitter é a própria praça pública? Ou o Twitter é como uma rádio, um jornal, um escritor, ou seja, apenas mais um veículo entre outros presentes nessa praça?

Legalmente falando, tratamos Redes como Facebook, Instagram, Twitter e até o TikTok como meros veículos privados de comunicação de massa. Porém, se consideramos o mundo digital um mundo concreto por onde transitamos e nos relacionamos, é possível também analisá-las como a própria res pública, ou seja, o próprio local onde nossos debates acontecem, muitas vezes com maior frequência, intensidade e velocidade.

Se assim for, se considerarmos as Redes o nosso palco público de debates, qualquer coisa que ali for proibida é censura sim. Aí chegamos num momento de transformação radical, não só daquilo que entendemos como limites, mas inclusive daquilo que classificamos como público ou privado atualmente. Então se esses gigantes privados passam a ser considerados espaços públicos, como fica sua autonomia? Como se dá sua legislação? A que têm direito e o que não podem mais fazer? Devem ser considerados meras concessionárias privadas de um serviço público, como a telefonia, por exemplo? Se assim for, muita coisa muda e eles deixam, por exemplo, de ter autonomia sobre quais informações ali circulam e quais as regras de quem entra e de quem sai. Essas regras passarão a ser estabelecidas por diferentes governos e, portanto, sofrerão variações de país para país.

Se, no entanto, mantivermos a maneira com que enxergamos as redes hoje, não, não houve censura.

Porém, não é tão simples assim.

Como classificar as dimensões e até o limite de poder que essas – poucas – empresas detêm quando se trata de formação da opinião pública? No caso do Facebook, Instagram e Whatsapp, por exemplo, três das principais redes sociais e de comunicação do planeta, o poder está nas mãos de uma pessoa só. É poder demais? Bom. É poder suficiente para calar um presidente da principal nação democrática do mundo e impedi-lo de se comunicar com sua população. É evidente que essa é uma questão delicada – moral, social e governamental – e que precisa ser discutida mais a fundo. Mais ainda se pegarmos como exemplo o caso da Parler – uma rede social inteira que rapidamente desapareceu quando Google e Apple retiraram o aplicativo de suas Stores, após a rede ser “adotada” pela direita.

Podemos então também pensar de outra forma: talvez o problema seja que não temos redes sociais suficientes. Se houvessem mais redes, o compartilhamento de informações seria mais descentralizado, assim como o poder. Ser banido de uma rede, dessa forma, não significaria ser cancelado do debate como um todo. Porém, como pontua o filósofo, escritor e professor Yuval Harari, as redes sociais seguem uma lógica diferente de outros mercados e estimulam a concentração de pessoas. Colocando de forma simples, numa estrutura mercadológica convencional, mais concorrência geralmente significa maiores vantagens para o consumidor. A lógica das redes implode a possibilidade de concorrência já de partida, pois todo mundo quer estar onde todo mundo está. E essa força, portanto, converge sociedades inteiras para dois ou três focos, apenas. Voltando ao caso da natimorta Parler, após Google e Apple impedirem o acesso via aplicativo, por último a Amazon a expulsa de seus servidores e é possível que a rede não volte mais.

O que é isso senão um cartel?

Esse é o paradoxo que enfrentamos. Porque o ponto, desta forma, deixa de ser diretamente sobre direito à livre expressão e passa a ser sobre monopólio de mercado.

Mas o que fica nisso tudo é um terceiro ponto que deve ser o centro do debate neste momento do mundo e que me faz voltar ao primeiro parágrafo desta coluna.

O banimento do ex-presidente Trump dos palcos do debate público – consideremos eles privados ou estatais, não importa agora – não se deu de uma hora para a outra; não foi aleatório ou imprevisto. O seu cancelamento se deu a partir de um acúmulo de ameaças à ordem, que culminaram em um ato de violência antidemocrática que visou não apenas impedir uma eleição democrática – ou dar um golpe mesmo, puro e simples – como também colocar em questionamento a veracidade e idoneidade da própria eleição através da repetição de acusações sem fundamento e declarações comprovadamente mentirosas.

Neste momento então chamamos o filósofo judeu Karl Popper e o seu Paradoxo da Tolerância para nos ajudar. Embora voltado para os regimes totalitários do século XX, especificamente o Nazista, infelizmente se encaixa bem ainda hoje.

Popper alega, resumidamente, que a partir do momento que o argumento racional não for mais possível no debate; quando o negacionismo substituir o conhecimento por uma realidade de auto verdade, ou melhor, de mentira mesmo, aí então “devemos nos reservar o direito de não tolerar o intolerante”.

Mas como identificamos o momento em que uma sociedade tolerante não deve mais tolerar quem não é tolerante? E o que fazemos quando esse momento chega?

À necessidade de estar atento e forte acrescento que é preciso agir. Chegamos ao ponto de virada em que voltamos a estar ameaçados pelo autoritarismo que, em nome da liberdade de expressão, profere mentiras e em nome do direito de se manifestar, ataca.

Nosso amigo Popper sabiamente continua, dizendo que “a tolerância ilimitada levará ao desaparecimento da tolerância”. Pra mim parece evidente que esse momento chegou.

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