o dilema da inovação

Uma pergunta que as pessoas geralmente não se fazem quando o assunto é ser inovador e disruptivo é um importantíssimo “até quando”.

Num geral, empresas, mercados e basicamente qualquer movimento sócio-cultural tendem a enxergar a disrupção como um divisor de águas, um ponto fixo, sólido e edificável pontualmente, ou melhor, uma vez só.

A questão é que embora em parte não estejam errados, tampouco estão corretos, uma vez que ainda que o fato da disrupção, a inovação, serem exercícios diários, já tenha focado relativamente claro na cabeça de seus líderes e representantes, o que esquecemos, no entanto, é o grande dilema da inovação: todo movimento disruptivo tem como fim seu estabelecimento enquanto status quo.

Toda mudança de regra tende a tornar-se regra no final.

Se não tende, ao menos tenciona, caso contrário qual o seu propósito de se fazer ser?

Mas então vamos lá, quando a inovação se torna o status, o que fazer?

Quase sempre, uma disrupção é uma releitura do que havia antes do status de ruptura.

Por exemplo, lembra quando a gente estudou “Escolas Literárias” no colégio? Ah, não vai me dizer que você não lembra da ordem sequencial de trovadorismo, humanismo, quinhentismo, classicismo, barroco, arcadismo, romantismo, realismo, e etc.? Não? Nada?

Puxa na memória que eu tenho certeza que você era um aluno aplicado, e o que eu quero que você se lembre é muito pouco: um movimento literário sempre se opunha ao anterior, e era uma renovação do penúltimo. Por exemplo: o realismo se opunha ao romantismo e tinha várias ligações com o arcadismo. E assim por diante.

Funciona da mesma forma. As escolas literárias foram grandes movimentos socioculturais de manutenção e ruptura, assim como qualquer outro tipo de inovação no mundo dos negócios atualmente.

A história não é cíclica, mas uma espiral que avança: o hoje rompe com o ontem para trazer de volta um novo anteontem até ser interrompido com o amanhã.

A questão do paradoxo é saber o quanto dura esse hoje. Por quanto tempo ele pode ser dito sem ser hipócrita.

Lembram quando o Batman (ele mesmo), disse que “Ou se morre como herói, ou vive-se o bastante para se tornar o vilão”, no filme “o cavaleiro das trevas”?

Pois bem, ele tinha razão.

Ou a inovação morre como heroína ou vive o suficiente para se tornar o status quo.

O paradoxo é que o sucesso da inovação é também o desastre da inovação.

Nesse sentido, empresas que conseguem criar algo absolutamente novo e disruptivo têm que tomar muito cuidado para não fazerem deste algo o fim em si.

O fim é realizar o novo, não o novo realizado.

A velha história da Kodak (que integra como tantas outras o tomo das sagas míticas do empreendedorismo), que dominava o mercado com diversos produtos e técnicas próprios e absolutamente “inovadores”, e ainda assim se recusou a abraçar a novidade das fotos digitais e por isso simplesmente desaparecer, me parece um bom exemplo.

Mas vejam bem! Não estou querendo me referir à construção material da inovação, mas focar no posicionamento: quando uma marca se estabelece como a grande disrupção, como ela consegue manter esse discurso após se tornar o status quo?

Vamos dar nome aos bois:

A Apple, por exemplo.

Uma das maiores marcas do mundo (e continua sendo sim), mas que se definiu, se posicionou, desde a década de 80, como a bandeira maior de um movimento de disrupção global que ia muito além de seus produtos materiais em si:

“Pense diferente” não foi apenas um slogan

Foi um movimento.

E quando todo mundo compra Apple, quem é que está pensando diferente agora?

Como marcas que se posicionam como a disrupção podem garantir sucesso, abrangência e dominação de mercado sem estarem sendo absolutamente hipócritas no discurso?

Pois é, se você veio até este texto procurando uma resposta definitiva, você se enganou. Definitiva não temos, mas há algumas possibilidades.

A primeira é evitar discursos baseados em premissas que você ou não pode, ou sabe que não quer cumprir.

O segundo é entender que quando nos pautamos na inovação como proposta de valor principal, quando nos configuramos arquetipados como foras-da-lei do status quo, não devemos jamais nos tornar sua lei em si, mas se a gente quer que todo mundo compre da gente, é justamente isso que a gente quer causar.

Entendem?

O mais doloroso desse paradoxo é entender que muitas vezes, seguir disruptivo é voltar àquilo que se combateu: você trouxe uma mudança sobre algo, alguma coisa, algum estado cultural, algum modo de ser. Quando essa mudança se estabelece como o padrão, o oposto volta a ser o que um dia foi combatido.

A cultura hipster de uns anos atrás nos mostrou bem isso: depois de décadas evoluindo enlatados, o orgânico e as máquinas de escrever voltaram à moda.

A história não é cíclica, mas uma espiral que avança.

Tenho certeza que em algum lugar na sede decadente da Kodak uma luz vermelha soou. caso contrário você passa a vender manutenção e não disrupção, tradição e não rebeldia.

O discurso da marca só pode pregar disrupção caso aceite passar por cima de si.

Caso contrário será, intempestivamente, datado e fadado a morder a língua em cima do sucesso que sua própria língua conquistou.

E possivelmente enfrentar um igualmente intempestivo fracasso.

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