Mistérios do home office, essa semana me peguei assistindo um trecho de “laços de família”, reprise de sucesso da novela de Manoel Carlos, da Globo.
Manoel Carlos mesmo, deluxe pack: Helena, núcleo abastado, carioquismos exacerbados, etc.
O núcleo abastado, inclusive, foi o que tive oportunidade de vislumbre naquela tarde.
Na cena, Marieta Severo faz a personagem pooooodre de rica e revela sua fortuna em cafés-da-manhã abastados (a marca registrada do autor da novela) e jantares dos mais luxuosos pra época.
Em um desses jantares, o que eu revi, a grande e ostentosa iguaria triunfal da mesa era uma salada de Kani.
Kani, aquele bastãozinho feito com restos prensados de peixe e com sabor artificial de caranguejo. Kani, aquele que hoje a gente dispensa quando vai pedir o combo no sushi. Que os sushimen tendem a usar quando querem baratear o preço do sushi. Kani, esse trequinho duvidoso que custa 10 reais que depois de fatiado chega a durar de três a quatro gerações humanas.
E por falar em geração, foi aí que comecei a pensar.
Laços de família estreou em 2000 e terminou em 2001. De la pra cá, veja o que aconteceu com o Kani. Mas claro, não foi só o Kani que mudou. Você também!
Muitos estudos (como o de 2016 da Moody’s, consagrada agência norte americana de pesquisas financeiras) apontam que a atual geração com dominação de mercado (pessoas que hoje vivem a década dos seus trinta anos), são, pela primeira vez na história, uma geração mais pobres que a dos pais.
“Pobre”, claro, é um termo amplo e relativo, mas a pesquisa se refere à pobreza com relação à falta de bens e estrutura financeira.
Isso acontece pois a geração atual pode ser classificada como “geração da experiência” – a geração que experimentou as coisas, “viveu”, por assim dizer, como eles próprios costumam deixar claro.
O acesso ao crédito e as facilidades de USO trazidas principalmente pela tecnologia, afastaram de vez o desejo de POSSE. Explico:
Comprar um carro (posse) garante aumento de patrimônio, mas implica um alto investimento e um custo praticamente eterno de manutenção. Usar um carro não. Você pode ir de Uber a qualquer lugar que quiser – tem uso, mas não posse. A mesma coisa vale para a moradia: eu posso simplesmente alugar. Não tenho posse, mas tenho uso. O grande sonho da geração anterior era a casa própria. O termo “o sonho da casa própria” – auge do carnê do Baú nos anos 80, era sempre usada nos mais variados motes da mídia. Sonho maior que esse, só se fosse uma casa na praia: aquele sonho reservado para o fim da vida, para quando já se tivesse atingido um patamar total de sossego e sucesso.
Pra que? Se eu tenho Airbnb?
A questão é que enquanto a geração anterior se preocupou em construir coisas com carreiras sólidas (muita gente morria no emprego que começava, algo inconcebível pra geração atual), a atual quer VIVER coisas através de carreiras fluidas. Ninguém aguenta – e nem precisa – aguentar desaforo – o que quer que seja que você define como desaforo – e ponto.
Enquanto a geração anterior tinha poucas opções numa prateleira de mercado, a oferta de consumo para a atual é monstruosa. Onde antes havia fubá, arroz, feijão e açúcar, hoje há o mundo.
Uma olhada na prateleira de sal: existe sal de todo tipo e preço. Sal. Sal mesmo, esse que antigamente era de um tipo só, de um preço só, e algo risível no orçamento doméstico. O jovem de hoje se preocupa em escolher o melhor sal, flor de sal, pedra de sal, sal rosa, sal himalaio, sal sem sódio, enfim. Os preços são todos quantos possíveis também. O sal, claro, não vem sozinho, mas é que se isso aconteceu com ele, imaginem com o restante. A gente não quer só comida, a gente quer comida, harmonização e experiências gastronômicas como forma de experimentar a vida. Um celular – que mal existia na época – hoje, além de ítem indispensável, chega a custar um terço de um carro popular. Se antes Casa & Carro eram a dupla indispensável da vida adulta, hoje temos muito mais custos na equação.
Enquanto a geração anterior só comia Kani caso fossem ricos ou visitassem a casa da Marieta Severo em laços de família, a atual não se priva: consome tudo quanto quer, e as posses ficam pra depois. Tanto que a demanda trouxe mais oferta e o Kani hoje é bem barato – embora pra muita gente da geração anterior seja uma iguaria, ou ainda, uma invenção de moda.
“Frescura”.
Igual assistir novela no meio da tarde.
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