Como “Laços de família” ensina sobre padrões de consumo em 2020

Mistérios do home office, essa semana me peguei assistindo um trecho de “laços de família”, reprise de sucesso da novela de Manoel Carlos, da Globo.

Manoel Carlos mesmo, deluxe pack: Helena, núcleo abastado, carioquismos exacerbados, etc.

O núcleo abastado, inclusive, foi o que tive oportunidade de vislumbre naquela tarde.

Na cena, Marieta Severo faz a personagem pooooodre de rica e revela sua fortuna em cafés-da-manhã abastados (a marca registrada do autor da novela) e jantares dos mais luxuosos pra época.

Em um desses jantares, o que eu revi, a grande e ostentosa iguaria triunfal da mesa era uma salada de Kani.

Kani, aquele bastãozinho feito com restos prensados de peixe e com sabor artificial de caranguejo. Kani, aquele que hoje a gente dispensa quando vai pedir o combo no sushi. Que os sushimen tendem a usar quando querem baratear o preço do sushi. Kani, esse trequinho duvidoso que custa 10 reais que depois de fatiado chega a durar de três a quatro gerações humanas.

E por falar em geração, foi aí que comecei a pensar.

Laços de família estreou em 2000 e terminou em 2001. De la pra cá, veja o que aconteceu com o Kani. Mas claro, não foi só o Kani que mudou. Você também!

Muitos estudos (como o de 2016 da Moody’s, consagrada agência norte americana de pesquisas financeiras) apontam que a atual geração com dominação de mercado (pessoas que hoje vivem a década dos seus trinta anos), são, pela primeira vez na história, uma geração mais pobres que a dos pais.

“Pobre”, claro, é um termo amplo e relativo, mas a pesquisa se refere à pobreza com relação à falta de bens e estrutura financeira.

Isso acontece pois a geração atual pode ser classificada como “geração da experiência” – a geração que experimentou as coisas, “viveu”, por assim dizer, como eles próprios costumam deixar claro.

O acesso ao crédito e as facilidades de USO trazidas principalmente pela tecnologia, afastaram de vez o desejo de POSSE. Explico:

Comprar um carro (posse) garante aumento de patrimônio, mas implica um alto investimento e um custo praticamente eterno de manutenção. Usar um carro não. Você pode ir de Uber a qualquer lugar que quiser – tem uso, mas não posse. A mesma coisa vale para a moradia: eu posso simplesmente alugar. Não tenho posse, mas tenho uso. O grande sonho da geração anterior era a casa própria. O termo “o sonho da casa própria” – auge do carnê do Baú nos anos 80, era sempre usada nos mais variados motes da mídia. Sonho maior que esse, só se fosse uma casa na praia: aquele sonho reservado para o fim da vida, para quando já se tivesse atingido um patamar total de sossego e sucesso.

Pra que? Se eu tenho Airbnb?

A questão é que enquanto a geração anterior se preocupou em construir coisas com carreiras sólidas (muita gente morria no emprego que começava, algo inconcebível pra geração atual), a atual quer VIVER coisas através de carreiras fluidas. Ninguém aguenta – e nem precisa – aguentar desaforo – o que quer que seja que você define como desaforo – e ponto.

Enquanto a geração anterior tinha poucas opções numa prateleira de mercado, a oferta de consumo para a atual é monstruosa. Onde antes havia fubá, arroz, feijão e açúcar, hoje há o mundo.

Uma olhada na prateleira de sal: existe sal de todo tipo e preço. Sal. Sal mesmo, esse que antigamente era de um tipo só, de um preço só, e algo risível no orçamento doméstico. O jovem de hoje se preocupa em escolher o melhor sal, flor de sal, pedra de sal, sal rosa, sal himalaio, sal sem sódio, enfim. Os preços são todos quantos possíveis também. O sal, claro, não vem sozinho, mas é que se isso aconteceu com ele, imaginem com o restante. A gente não quer só comida, a gente quer comida, harmonização e experiências gastronômicas como forma de experimentar a vida. Um celular – que mal existia na época – hoje, além de ítem indispensável, chega a custar um terço de um carro popular. Se antes Casa & Carro eram a dupla indispensável da vida adulta, hoje temos muito mais custos na equação.

Enquanto a geração anterior só comia Kani caso fossem ricos ou visitassem a casa da Marieta Severo em laços de família, a atual não se priva: consome tudo quanto quer, e as posses ficam pra depois. Tanto que a demanda trouxe mais oferta e o Kani hoje é bem barato – embora pra muita gente da geração anterior seja uma iguaria, ou ainda, uma invenção de moda.

“Frescura”.

Igual assistir novela no meio da tarde.

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